Catequese portuguesa ( 1)


Era uma boa vida. Nenhum dos amigos tinha aquela vida. Nem o irmão.  Um  amável spread  da hipoteca da casa – um magnífico  três assoalhadas com sotão, garagem e dois arrumos independentes  -, um BMW turbodiesel acabadinho de comprar só com 180.000 km vindo mesmo da Alemanha, uma família espectacular: duas filhas lindas e estudiosas e uma mulher amiga e companheira. Alves comia a sua granola  linha zero  ao final da tarde, saboreando um merecido sossego. As filhas tinham ido passar o feriado  a casa dos avós, a mulher estava nas compras, aquelas coisas que deixam as mulheres felizes e plenas.
Nesse mesmo instante,  num quarto aquecido, no outro lado da cidade, Raquel acabava de se vestir. Ele era  doze  anos mais novo do que  ela e isso notava-se bem. A barba da moda, o cabelo  louro desordenado, o olhar malandro e ainda agarotado. Por consequência, era quinze anos mais novo do que o marido e isso também se notava muito bem.  Apaixonadíssimo, cobria-lhe o corpo de beijos.  Antes e depois. No durante  prometia-lhe  coisas e cumpria. Telefono-te eu, ligas-me tu, despediu-se com um beijo demorado. Certificou-se de  que não esquecia os dois sacos  das compras (  uma blusa de saldo  e um par de brincos baratos para a filha mais velha) e  saiu. Raquel  estava  e feliz e plena.
A caminho de casa, a sombra  regressou. Gostava de ser daquelas mulheres que não pensam, mas não conseguia. Era errado o que andava a fazer   há um par de semanas?  Era e não era. Estava com o Alves há vinte  anos. As coisas corriam bem. As filhas cresceram, quase não discutiam, dividiam as  despesas com suavidade. O problema é que ela já não era a mesma. Com quarenta e seis anos precisava de mais qualquer coisa. A vida não podia ser só as aulas aos  miúdos, as compras no hiper, os jantares de família. Durante muito tempo até  bastou e nem sabia bem por que tinha deixado de  bastar.  O facebook deu uma ajuda? Talvez.  Ligou-a ao mundo. E ao colega mais novo que se fartou de pôr gostos nas suas fotografias. Passou  a ser a conversa entre eles no bar da escola. Os filmes em comum, as receitas vegan,  as músicas preferidas. Até que naquele dia ela deu-lhe boleia no final do jantar  do grupo de teatro. Ele foi direito ao assunto durante o trajecto. Que só pensava  nela, que desculpasse o atrevimento mas só pensava nela, que ser casada e mais velha era uma ficção. Raquel sentiu falta de ar. Saiu-lhe um vou pensar e despediram-se. No dia seguinte estava em casa dele ao final da tarde, enrolaram-se  como nos filmes mal ele abriu a porta. E assim durava há semanas.
Alves estava ainda mais à vontade. No seu fato de treino preferido, o verde, digeria  a granola escarrapachado no sofá.  Eram já seis da tarde, Raquel demorava-se sempre  no centro comercial, tinha essa mania. Também, coitada, com as miúdas crescidas e num feriado encostado ao fim de semana, sem aulas para preparar,  o que tinha com que se entreter?  Sim, o tempo passa depressa, agora eram um casal de meia idade, confortável na cumplicidade. Entendiam-se por sinais de fumo.
Ergueu-se do sofá e foi respirar o vapor da máquina da louça que tinha acabado o programa. Fazia muito bem às vias respiratórias, o muco renovava-se  e mantinha-se húmido.  Foi ao espelho da casa de banho e examinou a careca. Também maior. Riu-se. O tempo passa mesmo depressa: menos cabelo, mais barriga. Sim, mas foi o tempo que lhe deu tudo. Agora  era  assistente técnico de sétima categoria, tinha  um BMW mesmo alemão e para o ano podia começar a recuperar a casita que herdou dos pais em Vila Pouca. Como dizia a canção, o que eu  andei  para aqui chegar…
Raquel  estacionou o carro na rua e verificou sinais exteriores de felicidade no espelho. Nunca se  imaginou  naquela situação. Tinha tido umas fantasias, à beira dos quarenta, com um antigo colega que encontrava  nos jantares do liceu. Achou normal, falou com uma amiga, era normal. Isto era outra coisa. Não havia alternativa senão andar para a frente. Conciliar  o frisson e o bom sexo com a vida com o Alves. Um dia destes o rapaz fartava-se e ela regressava à sua vida pacata. Esta coisas aconteciam.
Alves recebeu-a com um sorriso compreensivo. Temos o resto do dia para nós – atirou. Raquel estava estafada, nem sentia os pés, as lojas nos feriados estão cheias de gente. Ele voltou à carga, falando alto para ela ouvir dentro do  quarto. Podíamos ir comer uma pizza. Era  o que me sabia mesmo bem, concordou Raquel, estou esfomeada.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Psycho killer ( 8)

Psycho killer ( 6)